O embate entre as teorias de rigidez e de flexibilidade é mais do que parte integrante da literatura jurídica trabalhista brasileira. Trata-se, verdadeiramente, do antagonismo definidor do próprio ordenamento laboral.

Entre as diversas expressões deste dissenso destaca-se aquela que, se resolvida, talvez permita superar o atual estágio de retração em nossa ordem trabalhista: a superação do modelo legislado em favor de um modelo que favoreça o aspecto negocial.

Registre-se, contudo, um alerta inicial: rejeitar o atual modelo legislado rígido[1] não implica defender a desregulamentação; todo mercado de trabalho precisa ser regulado. Todavia, há várias formas de regulação. O modelo brasileiroé quase exclusivamente baseado na lei e muito pouco em negociação. Aí está a origem de muitos dos nossos atuais problemas.

MODELO ANTIGO X RELAÇÕES NOVAS

A complexidade dos atuais conflitos do trabalho em nada se compara às questões submetidas à Justiça do Trabalho à época em que a CLT firmou suas bases, compondo a espinha dorsal do ordenamento trabalhista. As transformações ocorridas no mercado econômico modificaram a lógica das organizações empresariais, movidas essencialmente pela competitividade.O desenvolvimento das relações interempresas favoreceu este cenário em que se busca mão-de-obra cada vez mais especializada.

A enorme diversidade encontrada nas relações de trabalho contemporâneas só pode ser regulada por um sistema aberto, que favoreça a negociação coletiva[2], permitindo a criação de regras adequadas a cada forma de trabalho. Todavia, o sistema rígido da CLT, aprovado durante o período ditatorial do governo Vargas, praticamente não deixa espaço para a autodeterminação das partes, limitando severamente o alcance da negociação coletiva.

Ocorre que, passados praticamente 70 anos de sua composição, estamosainda a insistir neste ultrapassado sistema. A Constituição Federal reconhece os acordos e convenções coletivas de trabalho, mas na prática pouquíssimos direitos podem ser negociados, como o caso dos salários e da participação nos lucros ou resultados.

A dificuldade não se limita à curta autonomia negocial. Sujeitam-se ainda os atores na negociação coletiva ao angustiante risco de verem seus acordos e convenções invalidados pela Justiça do Trabalho.

É bem verdade que a negociação coletiva está limitada às possibilidades que o próprio sistema sindical lhe oferece. As restrições postas constitucionalmente à liberdade sindicalmuitas vezes acabam por retirar dos sindicatos parcela substancial desua esperada representatividade, levando magistrados a negar vigência aos acordos por eles celebrados.

Ao suprimir eficácia do acordo ou convenção coletiva, impulsiona-se o sistema em direção à rigidez do legislado, que não se ajusta da forma desejável à realidade das especificidades de cada relação de trabalho. No meio acadêmico, há muito, se tem larga aceitação da teoria reducionista da participação do Estado. Eis o ideal a ser perseguido: intervenção judicial mínima nos acordos, limitando-se aos casos de ofensa direta à lei.

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REMANDO CONTRA A MARÉ

O abuso dos vetores que orientam a ordem trabalhista – tanto pelo legislador, quanto pelos magistrados –acabam por gerar situações únicas em nosso sistema. Veja-se o caso do seguro-desemprego: o Brasil é, talvez, o único exemplo na literatura internacionalem que as despesas com este tipo de seguro aumentam em períodos de alta na empregabilidade.O que explica essa distorção?

O benefício, cuja duração pode se estender de três a seis meses, é concedido para garantir meios ao trabalhador demitido para prover seu sustento.[3] Ocorre que muitos empregados provocam sua própria demissão, após 12 meses de trabalho, a fim de receber o pagamento da indenização e ter direito ao recebimento do seguro-desemprego.

A lei que rege o seguro-desemprego determina a suspensão do benefício na hipótese de admissão em um novo emprego. No entanto, muitos optam por trabalhar informalmente, preservando o recebimentodo seguro, cumulando-o com os novos vencimentos, ainda que na informalidade.

No Judiciário, tais distorções são ainda mais preocupantes, porque dissimulam os impactos negativos que acarretam para a economia. Não se pode olvidar que o Poder Judiciário de um país exerce importante influência na captação de investimento estrangeiro. A demanda pela criação de políticas econômicas e trabalhistas menos rígidas não vem só do Setor Produtivo, mas também se origina de fora para dentro do país; verdadeiro requisito para a inserção nos mercados internacionais.

Entre os aspectos avaliados por um investidor, ao prospectar novos empreendimentos, está o grau de segurança jurídica esperado do local onde este pretende aplicar recursos; trata-se de regra elementar de planejamento estratégico.Muitas vezes, grandes investimentos, com enorme potencial de geração de empregos, acabam por deixar o país por não identificarem em nosso ordenamento trabalhista um patamar mínimo de garantias institucionais.

Um Judiciário confiável, com razoável grau de previsibilidade de suas ações, sem dúvida é um elemento de atração de investimentos. Vozes cônscias do problema surgem da cúpula do Judiciário Trabalhista, como o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra da Silva Martins Filho, que em artigo publicado recentemente, alerta para o risco dos malabarismos jurídicos na esfera trabalhista:“…, corre-se um perigo real, quando se envereda pelo ativismo judiciário e se quer extrair de princípios de baixa densidade normativa obrigações concretas de conteúdo econômico: acirrar o conflito social e tornar a Justiça ideologizada e parcial.”[4]

As relações de trabalho no Brasil, já sujeitas à forte rigidez das leis e uma enorme diversidade de atos infralegais, sofrem ainda com a interferência dos poderes constituídos naquilo que é livremente negociado pelas partes. Estamos remando contra a maré: o resto do mundo trabalha para simplificar as normas rígidas, estimular a negociação e cuidar para que os órgãos judicantes evitem o ativismo fundado em princípios de baixa densidade normativa.

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Não se trata de passar ao largo do princípio da proteção, mesmo porque “a necessidade de proteção social aos trabalhadores constitui a raiz sociológica do Direito do Trabalho e é imanente a todo o seu sistema jurídico” [5]. Todavia, a proteção ao trabalho deve ser vista pelo prisma das modernas redes de produção. Deve-se buscar reduzir a informalidade, verdadeira fonte de precarização do trabalho.

O momento exige dos juslaboralistas uma releitura do princípio da proteção que se mostre adequada às formas de produção contemporâneas. Reduzir rigidez sem comprometer o núcleo de garantias – eis o desafio.

O MERCADO SE ADAPTA

Há leis que regulam o mercado de trabalho de formainvisível aos olhos da legislação positiva e, muitas vezes, da própria Justiça do Trabalho, seu intérprete autorizado. A pressão resultante dos altos custos do trabalho aponta no sentido de redução da rigidez do sistema trabalhista, mas a velocidade do processo legislativo nunca acompanha o tempo que rege as mudanças ocorridas no seio da sociedade.

Daí resulta uma alternativa paliativa, como forma de adequar o sistema ao mercado: a informalidade. É neste grupo que se encontra a maior parte da mão-de-obra pouco ou não qualificada no Brasil.

A lógica do mercado, motivado pela competitividade, é inexorável. Quando se choca com o modelo rígido, impulsiona um exército de trabalhadores em direção à marginalidade social: desempregados, subempregados, trabalhadores temporários e, principalmente, informais.

A informalidade, embora decrescente, ainda afeta grande parcela do mercado de trabalho: o ordenamento não responde bem às pressões por flexibilização e acaba por forçartrabalhadores em direção a uma alternativa heterodoxa.

A informalidade pode ser considerada uma forma primitiva de flexibilização no Brasil, uma vez que os trabalhadores informais não possuem proteção, o Estado não recolhe contribuições previdenciárias e os empregadores não têm segurança jurídica[6].

Mais do que uma forma primitiva de flexibilização, a informalidade é uma forma precária de trabalho. Os riscos envolvidos nesta precarização não devem ser subestimados: as degradantes condições de trabalho e os grandes índices de acidentes são características marcantes do trabalho informal.

O atual nivelamento “por cima”, em vez de conferir proteção a todos os trabalhadores, expele grande parcela dos trabalhadores das relações de trabalho formais, criando um exército de informais marginalizados. Este grupo não dispõe das mais rudimentares proteções das leis trabalhistas ou previdenciárias. Não se beneficiam de regime de afastamento acidentário, licença-maternidade, garantias ou benefícios concedidos aos trabalhadores formais. É este o sistema que queremos? Quanto mais rígida a legislação, maior a informalidade.

A informalidade não comporta negociações organizadas. Além disso, o trabalhador informal raramente tem acesso a direitos trabalhistas garantidos aos formais; muitas vezes sequer recebem o mínimo salarial.

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E como corrigir este cenário?O crescimento econômico e o estímulo à formalização sem dúvida são indutores da formalidade. Contudo, sozinhos, não são suficientes. Devem vir acompanhados de uma reforma sistêmica do trabalhismo, superando o modelo rígido incompatível com a dinâmica contemporânea das modernas redes de produção.

Maior liberdade e autonomia das partes na relação de trabalho, além de essenciais para superar a estufa moderadora instituída por nosso modelo inflexível, constituirão terreno fértil onde a vocação negocial do direito do trabalho certamente florescerá. O caminho a ser percorrido é extenso e complicado; passa pela sensibilização dos magistrados, pela alteração de marcos legais e, principalmente, pelo engajamento das partes na negociação coletiva que devem compreender, de uma vez por todas, que aí está o caminho para a superação dos impasses do direito trabalhista: a superação de um modelo rígido em favor de um modelo com verdadeira abertura para o negociado.

 


[1]São características marcantes do modelo legislado rígido: o dirigismo do Estado nas relações de trabalho, a ampla regulação por lei e um sistema de negociação coletiva tímido, cerceado por limites constitucionais e infraconstitucionais. Somem-se a isto, no contexto brasileiro, restrições à liberdade sindical e ao exercício de direitos.

 

[2] Nos termos do artigo 2º da Convenção 154 da OIT, promulgada pelo Decreto 1.256/94, a expressão “negociação coletiva” compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com o fim de: fixar as condições de trabalho e emprego; ou regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.

 

[3] Nos termos do artigo 1º da Lei 7.998/90, o Programa de Seguro-Desemprego tem por finalidade prover assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado em virtude de dispensa sem justa causa, inclusive a indireta, e ao trabalhador comprovadamente resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo.

 

[4] MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Os pilares do direito do trabalho – princípios e sua densidade normativa. In: Revista da LTr nº 07/76, de julho de 2012.

 

[5] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.66.

[6]PASTORE, José. Crises econômicas e flexibilidade no trabalho. Os casos da Alemanha e do Brasil. CNI: São Paulo, 2011.p. 55.